segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Tio Mendes e o Azeite da Cantina

................... Eu tive um tio marinheiro.
De seu nome António Ângelo, ficou no entanto na memória familiar como o Tio Mendes. Digo memória mas, na verdade, nunca o conheci em pessoa visto ele ter morrido uns cinco ou seis anos antes de eu nascer. Essa falta foi, no entanto, amplamente suprida pelas inúmeras histórias da sua viúva e companheira de uma vida, a Tia Lucinda, a das farinheiras que vos contei aqui.
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Gostava de ter conhecido o Tio Mendes, marinheiro.
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Das histórias da tia Lucinda nasceu um tio, talvez mítico, mas seguramente uma figura ímpar e de contornos tão definidos como se toda a vida o tivesse conhecido.
O Tio Mendes havia fugido de casa aos 16 anos, do Porto, e veio alistar-se como voluntário na Marinha, tinha acabado de eclodir a Primeira Guerra Mundial.
Dotado de uma perícia manual e uma capacidade de concentração notáveis, tornou-se um radiotelegrafista de primeira categoria, tendo chegado a ser o único comandante militar da Ilha Graciosa apenas com o posto de sargento, isto em 1930-32.
Homem de convicções fortes e inabaláveis, tinha um tal sentido do dever e da rectidão militares que, sendo ele próprio um republicano laico que abominava Salazar, então nos seus primórdios de ditador, esteve prestes a ser fuzilado pelos revoltosos conhecidos pela Revolta da Madeira de 1931, que fez abortar na Graciosa ao sabotar as comunicações da revolta, num acto que nunca foi reconhecido e que quase lhe custou a vida. Isto apesar desse ódio particular que alimentava por clérigos e por Salazar, por esta ordem, e que só seria igualado em intensidade pelo amor que dedicava ao dever e ao bacalhau.
Contava a tia Lucinda que, após uma refeição mal sucedida, este lhe havia dito que não percebia porque não lhe dava bacalhau e pronto, era tudo o que ele precisava. Decidiu pô-lo à prova e deu-lhe bacalhau durante mais de dois anos, ao almoço e ao jantar, ele sempre impávido e contente.
Depois, quando vencida lhe aligeirou o regime, apenas o ouviu queixar-se "então acabou-se o bacalhau?".
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Deste tio militar e marinheiro ficou que a minha casa era abastecida de mercearias através de uma Cantina da Manutenção Militar e Brigada Naval, não posso precisar se o nome era mesmo assim, mas seria parecido.
Todos os meses, num determinado dia "dava-se a requisição", que era um telefonema para a dita cantina com o rol de compras desse mês, numa cantilena de que eu já sabia as inflexões e pormenores enquanto a minha mãe ia debitando "cinco quilos de arroz carolino, do glaceado, trinta quilos de batatas, dois quilos de macarronete riscado mas não quero da Manutenção, que traz gorgulho, dez litros de azeite de primeira, cinco quilos de açúcar branco" e por aí fora até acabar a lista que se estendia por duas ou três folhas de papel.
Depois, a um dia certo, lá chegava o camião enorme da distribuição, parecia um camião desses das mudanças que antigamente era sempre "Galamas" mas este dizia outra coisa e tinha uma matrícula militar que começava sempre por MM, manutenção militar, tinha-me ensinado o meu pai.
No camião vinha o Senhor Graça e mais outro. O Senhor Graça era sempre o mesmo mas o outro ia variando e não tinha direito a nome que se conhecesse, era o "outro". O Senhor Graça tocava à campaínha e depois gritava lá de baixo "cantina!" que era para abrirmos as duas metades da porta e facilitarmos assim a entrada dos géneros que iam chegando e sendo arrumados, as batatas na tulha, o azeite transfegado da lata enorme em que vinha para a vasilha de minha casa, etc., enquanto a minha mãe ia vigiando a lista e pondo uns vêzinhos à frente à medida que a casa enchia.
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O Senhor Graça, que vi sempre vestido de fato-macaco azul, era como se fosse um velho amigo da família, primeiro era magro e com cabelo, depois foi encorpando à medida que o cabelo desaparecia e parecia um santo antónio quando o vi pela última vez, a "cantina" acabou pouco depois do 25 de Abril.
O Senhor Graça era como que um tio que lá ia uma vez por mês; ficava um bocadinho a conversar e nós íamos sabendo das filhas e dos seus estudos, da mulher e das suas doenças, enfim, da sua vida, alegrias e tristezas, como as de todas as vidas, ele ia mostrando as fotos que trazia na carteira e nós íamos assim conhecendo as duas crianças na primeira comunhão que depois já eram jovens e, no fim, uma já tinha entrado para a Universidade e ele com os olhos brilhantes de emoção, a contar, já com o "outro" a impacientar-se lá em baixo, ao volante do camião.
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Foi o Senhor Graça que contou do azeite.

Um dia a minha mãe disse-lhe, em tom de reclamação que o azeite andava esquisito, nem parecia o mesmo de sempre e foi então que o Senhor Graça passou a voz para o modo baixinho com que se diziam as coisas que as paredes não podiam ouvir e disse que o azeite puro tinha sido proibido em Portugal, agora era, por Lei, loteado com uma percentagem, já não me lembro qual, de óleo de amendoim, dizia o governo que era para não fazer mal à saúde, mas o Senhor Graça, ainda mais baixinho, dizia à minha mãe que havia um ministro ou outra eminência parda "da situação" que tinha um império de amendoins nos campos das colónias, que era preciso esgotar.
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Deve ter sido a minha primeira experiência vivida da "acção dos mercados" na nossa vida e também no nosso prato.
Pouco tempo depois já toda a família achava o azeite que a Gina trazia de Santiago do Cacém, puro e de contrabando, para fazer as suas açordas e sopas de alho alentejanas, um azeite "forte" demais e o óleo entrou assim disfarçado em Portugal.
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Espantoso a sério é que esse episódio tenha sido apagado da memória colectiva. Passou-se com todos nós os que éramos nascidos no início dos anos 60, mas hoje ninguém se lembra, como se tivesse sido passada uma esponja de esquecimento sobre os 5 ou 6 anos em que o azeite virgem de Portugal tinha óleo de amendoim.
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